"Nenhum povo pode viver em harmonia consigo mesmo sem uma imagem positiva de si". (Eduardo Lourenço, 1978)
Marcelo domina o significado deste postulado político e conhece bem os mecanismos discursivos da sua construção. O seu discurso de tomada de posse ilustra-o: numa paisagem turva, num tempo incerto, Marcelo diz-nos que temos um desígnio grandioso, gravado num grande passado, num grande futuro; fala-nos do sangue, da terra e da língua, da crença em milagres de Ourique ou do heroísmo em momentos difíceis, unindo num desígnio único o tratado de Zamora, os descobrimentos, o 25 de Abril, ou a restauração da independência. Os convidados certos estão lá: a velha vizinha, as ex-colónias, a Europa.
Memória, afeto, fidelidade a um destino comum são os marcadores de um mapa onde todos cabem, para onde todos são convocados e citados, como atores de uma história una, singular, universal. Forte na retórica de legitimação, os conteúdos políticos mais densos e críticos (dois milhões de pobres, ou "aqueles que a mão invisível apagou") são expostos numa dinâmica de polaridades (rigor financeiro/injustiças e conflitos sociais), cuja ultrapassagem se faz pela superação em síntese conciliadora dos valores "de sempre" e da "fé em Portugal", o cimento do edifício. Estão reunidos os ideais espirituais e políticos do Quinto Império, numa criação poderosa, objetivamente intencional para onde concorrem todas as palavras, todas as cores!
Mas há ainda o Marcelo do terreno: do café, da selfie, dos contactos informais e não programados; o Marcelo do homem concreto e da rua que distribui abraços ao invés de promessas.
E ainda outro… no Terreiro do Paço, entre crianças, no centro do palco e da câmara, no domínio absoluto da sedução; simples, exposto, solar!
"Não é possível construir nem viver de uma imagem nacional asséptica" (E.Lourenço). Marcelo sabe-o. Aprofunda, e corporiza em si mesmo - homem, líder, presidente - a essência realizada do abraço ecuménico do universalismo português.
O tecido simbólico é poderosíssimo, violentamente cativante e aglutinador. Mas, mítico.
No Labirinto da Saudade, frágeis no conhecimento de si, da sua terra e culturas, os portugueses, no dizer de Eduardo Lourenço, vivem de forma passional a existência, mas não a compreendem; "justamente por isso, nada é mais necessário do que rever, renovar, suspeitar sem tréguas das imagens e dos mitos que nelas se encarnam inseparáveis da nossa relação com a pátria que fomos, somos, seremos". Sem isso, como diz Torga, citado por Marcelo, perpetuaremos "a obscura inocência com que atuamos na história".
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